quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O CULTO AO PASSADO
Feliz simulacro! Digo, aniversário.


"Comemoração de aniversário, geralmente, é o culto a tudo o que o passado nos construiu. Que o homem prefira não comemorar, não saber o que é, quem é, o que a vida fez consigo, para não se prender a nada, e assim ter a liberdade de ser, não ter vontades, pré-conceitos e traumas, mas apenas escolher."

É costume de quase todas as culturas comemorar a passagem do tempo de um ano de determinados eventos, entre eles, o simples fato da existência de uma pessoa. Alguns povos comemoram a partir do momento da fecundação, outros comemoram a partir do nascimento, e alguns, ainda, a partir de alguma iniciação religiosa ou mística – como o batismo. Em algumas culturas, o aniversário é comemorado nove dias após a data de nascimento, que, segundo suas crenças, traria mais sorte e felicidade no ano seguinte.

O fato é que este ritual tem fortes implicações na estrutura individual e social do homem, proporcionando, através de uma essência dissimulada estimulada pela tradição e instintos humanos, uma felicidade falsa e vazia.

A origem da tradição da comemoração do aniversário existencial encontra-se no domínio das crenças, magia e religião, que assim é permeado de uma porção de ritos e mitos. O costume de dar parabéns, dar presentes e de celebração - com o requinte de velas acesas - nos tempos antigos acontecia com o objetivo de proteger o aniversariante de demônios e garantir segurança no ano que viria. Esta celebração sempre foi um costume muito forte na cultura pagã – motivo pelo qual se observarmos a história do cristianismo, até o quarto século, é percebida a sua rejeição a tal evento. 

O costume de acender velas nos bolos começou com os gregos. Eram bolos de mel redondos e iluminados com velas, que eram colocados nos altares do templo de Ártemis. As velas de aniversário, ainda hoje na crença popular, são dotadas de magia especial para atender pedidos. Originariamente, as velas acesas e fogos sacrificiais tinham um significado místico especial desde que os homens começaram a construir altares para seus deuses. As velas significavam honra e tributo à criança aniversariante, além de trazer boa sorte.

Os gregos diziam que cada um tinha um espírito protetor ou gênio inspirador que assistia seu nascimento e vigiava-o em vida. Este espírito tinha uma relação mística com o Deus que regia a época do ano em que o indivíduo nascia. Os antigos egípcios acreditavam que, durante cerca de 15 minutos por ano, o Sol entrava em conjunção perfeita (zero graus) com o Sol do mapa astral de cada pessoa da Terra. Ocorreria no dia do aniversário de cada um, sendo este o período mais forte do ano para a realização deste ritual de transmutação. Ou seja, seria o momento em que mais energias rondariam a aura da pessoa,  o que ainda seria complementado com todas as energias transmitidas pelos familiares e amigos através de orações, boas intenções e abraços.

Os romanos também endossavam essa ideia. Acreditava-se também que as saudações à data do nascimento tinham poder para o bem ou para o mal, porque a pessoa neste dia supostamente estava perto do mundo espiritual. 

Através de todos estes resíduos históricos da cultura de nossos antepassados, somos acostumados, desde pequenos, a nos importar com esta data, - embora o motivo já tenha sido esquecido - este é o momento onde somos o centro das atenções, momento onde nossos desejos podem se tornar reais e tendem a ser mais importante para o social do que usualmente.

Em geral, datas comemorativas sempre são um momento de paz, tranquilidade, uma nova oportunidade, vida nova. A comemoração do aniversário não é diferente. No entanto, nesta data, é apenas o aniversáriante que se torna imune à condenação do “olhar do outro”. Faz-se de tudo para o bem estar do aniversariante.

A simples proximidade da data é o suficiente para o início da construção do clima ritualístico – herança carregada por nossa cultura que ainda atormenta a mente do homem pós-moderno, mesmo com o seu motivo primeiro e objetivo dissipado.

As velas, a canção, o bolo, bexigas, a decoração, a festa: tudo faz parte de um ritual que permeia a mente dos homens. O presente é o ritual indispensável. A ilusão é tamanha a ponto da mente do aniversáriante não aceitar um convidado que chegue de mãos abanando. Ora, que vergonha, mas quem em sã consciência se atreveria a fazer isto?

Como sabemos, viver em sociedade, em família, ou apenas com um “outro” não é nada simples. E esta costuma ser a rotina de uma família dita normal.

Mas nesta data o simulacro fala mais alto: o abraço maternal, fraternal, paterno - tudo é tão lindo. Esquece-se o passado familiar conturbado, cheio de estresses e raiva. Dá-se lugar à dissimulação, todos fingem que vivem a maior das alegrias – o gozo permeia a noite. Cantarola-se a noite toda em um aparelho de videokê.

O simulacro acontece quando a personalidade individual do indivíduo se dissipa, dando lugar apenas a um ser social que tem como objetivo e vontade única a de se adaptar aos demais. E as datas comemorativas proporcionam um ambiente propício a esta peculiaridade humana. Padrões de pensamento, vestuário, vontades, gostos, falas e comportamento brotam com mais facilidade.

Assim, ritualizam-se frases como: “ Felicidades! Tudo de bom para você, que você alcance todos os seus desejos! Agora que você cresceu (de um dia pro outro) vamos ver se não brigamos mais, afinal nos amamos!”.

Alguma piadinha casual, pejorativa, sobre o real relacionamento existente entre o aniversariante e o parabenizador sempre aparece – nem mesmo a maior das mentes fantasiosas conseguiria fingir tanto. Uma luta proporcionada pela vergonha de participar de tal ritual, causada entre o ser individual e social que existe dentre de cada um, mas que é, quase sempre, vencida pelo simulacro.

“Felicidades! Te desejo muito trabalho, paz e amor, e vê se você melhora este ano, hein! Hehe!”.

Em seguida vem o presente, para selar o relacionamento ritualístico a que a sociedade nos obriga – e a luta termina em comodismo ao confortável, adaptável. 

A hora mais especial é o momento do parabéns, ápice do ritual, e altar do aniversariante. Neste momento, todos ficamos encabulados, não sabemos onde colocar a cara – se pudéssemos escolher, pularíamos esta parte. E não só esta, a própria organização da festa é um tormento. Primeiro, pensamos nos convidados, e já ficamos preocupados com a real presença deles – imagine organizar uma festa, ou apenas uma reunião, e não aparecer quase ninguém? Já com esta preocupação, começamos a convidar aqueles “colegas”, pessoas que estão naquele momento fazendo parte de nossas vidas, mas que na realidade não conhecemos. Tudo isso para não sofrermos com a possibilidade de uma festa de aniversário falida.

E os amigos do passado ou parentes distantes na realidade não conhecemos mais. São aquelas pessoas que conviveram conosco durante nossa infância, mas os convidamos. Lá o passado vem a tona através de lembranças e todos fingem que ainda são os mesmos por um certo momento. O amor permeia os parentes durante toda a festa, um amor que acontece apenas uma vez por ano, todo o resto do ano o que resta é indiferença e distância – por alguma razão, como diria Forrest Gump.

A família troca elogios padronizados, ritualizados, sobre o quão lindo e grande o filho de fulana está, e quão magra e bonita a outra está – eles não são livres para pensar, seu pensamento é dominado e conduzido pela cultura em que vivem. As piadas são o momento dos homens. Engana-se quando diz-se que é o papo de futebol ou política que envolve o lugar, na verdade são as piadas que  o mitificam com altas gargalhadas e culto ao nada – ao prazer vazio, que logo é habitado também pelas mulheres. 

Esta celebração é uma mentira e um evento desagradável, mas que é mantida pelo vírus da tradição e instinto humano de adaptação.

Dia 8 de fevereiro é meu aniversário, mas sabendo de tudo isso, eu não tenho data para comemorar.

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